O uso de material de referência é essencial na preparação do professor de Português
José Neres*A farta extensão territorial do Brasil permite que, mesmo tendo uma língua em comum, pessoas de diferentes origens se expressem de modos distintos, utilizando palavras e expressões que são usuais em uma comunidade linguística, mas totalmente desconhecidas em outra, embora nem sempre a distância física entre os dois territórios seja grande.
Essas marcas regionais dificilmente são transferidas para a escrita, mas invariavelmente se manifestam durante a fala. Não é à toa que Rousseau, em seu Ensaio Sobre a Origem das Línguas, afirma que ninguém sabe de onde um homem é até que ele comece a falar. A presença de um falante de determinada variante fonética em um ambiente linguístico diferente é denunciada tão logo ele comece a se comunicar oralmente. Não demorará muito para alguém sair com uma das seguintes frases: "Você não é daqui", "Você fala engraçado", "Você fala de modo estranho" ou "De onde você é?".
Nem sempre se trata de preconceito, mas sim de um processo de identificação acústico-fonético quase imediato pelo qual qualquer pessoa pode passar quando adentra em uma comunidade com padrão de pronúncia diferente daquela com a qual já estamos acostumados.
Porém, não é só pela pronúncia que a identidade linguística de alguém se manifesta. Há também o caso do vocabulário específico de determinadas regiões. Algumas dessas palavras acabam saindo dos limites regionais e se tornam conhecidas em um território mais vasto, servindo ora como referencial cultural, ora como espécie de caricatura dos representantes das localidades de onde tais vocábulos foram disseminados. Dessa forma, o Brasil inteiro costuma associar a palavra "trem" aos mineiros; "painho" e "mainha" aos baianos; "visse" ao pernambucano, e "tchê" aos gaúchos.
Quase sempre de maneira jocosa, como mote para brincadeiras que possam denegrir a imagem dos alvos das anedotas.
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Um vocabulário bem maranhense
No Maranhão, estado conhecido por sua culinária, por sua literatura e por seus baixíssimos índices de IDH, há várias palavras que se tornaram marcas identitárias do povo. Algumas palavras denunciam a presença de um maranhense em outra localidade. Infelizmente, não são muitos os estudos que se dedicam a verificar as variantes regionais.
No caso de Maranhão, de um lado temos trabalhos de cunho científico, como o projeto Alima - Atlas Linguístico do Maranhão, coordenado pelos professores José de Ribamar Mendes Bezerra, Maria da Conceição Ramos e Maria de Fátima Sopas Rocha, além dos pioneiros estudos sociolinguísticos do professor Ramiro Azevedo. O folclorista José Raimundo Gonçalves também organizou um pequeno glossário de palavras e expressões bastante usuais no Maranhão (o Pequeno vocabulário popular do Maranhão). Do outro lado, temos as facilidades da internet, com seus blogs e sites de relacionamento que divulgam para o mundo curiosidades vocabulares que até bem pouco tempo eram conhecidas somente entre os habitantes do Estado ou dos visitantes que se divertiam com as "pérolas" encontradas nas conversas de bares e esquinas.
A polissemia do hem-hem
O vocabulário maranhense é bastante diversificado. É possível, durante uma viagem ao sul do Estado, encontrar alguém que, aconselhando a um amigo ou a uma amiga, diga: "Deixa de inticar com essa puaca do móveis, ela é enfarenta mesmo", que, em uma tradução ficaria mais ou menos assim: "Deixe de se chatear com essa poeira que se acumula sobre os móveis, ela aborece mesmo."
Porém poucas são as pessoas que se preocupam em estudar uma palavra/ expressão que é uma das marcas registradas do falar maranhense: o hem-hem.
Polissêmico por natureza, assim como as palavras coisa e ponto, o hem-hem tem o poder de metamorfosear seus múltiplos significados de acordo com o contexto em que esteja inserido. Em si, a palavra nada significa. Contudo, quando utilizada em uma situação frasal, ganha dimensões que vão além do que pode prever um estudo superficial.
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O hem-hem pode ser dito de forma rápida, para pôr fim a uma conversa ou a um assunto. O rapaz pergunta para a namorada se ela quer mesmo acabar com a relação, e ela responde com um breve "hem-hem", vira as costas e vai embora. Mas quando pronunciado de forma alongada, pode demonstrar atenção total ao que é dito, como quando alguém decide contar um segredo e escuta um "hem-heeeeeem", que tanto pode ser de aprovação, de reprovação ou simplesmente um sinal para continuar a narrativa.
Há casos em que a expressão é usada para iniciar uma conversa mais séria. O pai chega para a filha e diz: "Hem-hem, agora quero falar sobre aquele rapaz que anda ligando para você.", ou pode apresentar um tom desafio: "Hem-hem, papai, quer dizer que o senhor anda mexendo em meu celular, hem?".
De acordo com a necessidade, pode encerrar uma conversa: "Hem-hem, minha amiga, depois falamos", mas também pode servir como elemento fático e demonstrar interesse ou desinteresse do receptor com relação ao assunto discutido, deixando claro no contexto que a conversa pode continuar ou não: "hem-hem, pode parar." ou "Hem-hem, continua, continua!". Quando alguém fala muito ao telefone, sem dar tempo de responder, o interlocutor, que nem sempre está atento à conversa, pode valer-se de um "hem-hem" como forma de demonstrar que está entendendo o interminável monólogo.
Como apresenta multiplicidade de sentidos, essa palavra serve também como forma de causar ambiguidade, pois diante de uma pergunta como "A festa foi boa?", um simples hem-hem como resposta, sem uma entonação enfática e sem uma complementação da ideia, não fica claro se a resposta é positiva ou negativa.
Como apresenta multiplicidade de sentidos, essa palavra serve também como forma de causar ambiguidade, pois diante de uma pergunta como "A festa foi boa?", um simples hem-hem como resposta, sem uma entonação enfática e sem uma complementação da ideia, não fica claro se a resposta é positiva ou negativa.
O falar maranhense na prática
O analista de sistemas maranhense Armando Henrique de Jesus resolveu, em um momento de ócio, escrever uma pequena história fictícia utilizando o máximo de expressões típicas da região que marcaram sua infância. O texto não demorou a se espalhar pela internet e é reproduzido aqui com autorização do autor:
Um dia na vida de Reginete
Por Armando Henrique ("Piruca")
Reginete, a empregada da casa do Vieira, chega da Rua Grande toda querendo ser, de traca amarela, uma japonesa bandeirosa com pontuação 2 números acima da sua, rebolando e exibindo sua calça nova, daquelas bem apertadas e lá no rendengue, que comprou para sair à noite. Logo gerou um bafafá das invejosas de plantão.
- Olha a barata do Vieira. Quer se aparecer! Tá escritinha uma fulêra!
E tu parece uma nigrinha dando conta da vida dos outros - retruca à mulher Seu Barriga, que estava só coíra descansando em um pequeno mocho na porta de casa.
Porém, despertou também o interesse de toda a curriola da rua. A galera do chucho parou para secar a moça. Até quem tava no desafiado.
Guga largou de empinar seu papagaio aos gritos de "lá vaiii lá vaiii...", batendo tala, mas sempre na guina para lancear melhor e com uma bimbarra do freio reforçada e linha puída pelos amigos que o sabotavam pisando disfarçadamente, para admirar:
- Éguass Reginete! Tá pintosa como quê!
- Hmmmm piqueno. O que é heim? Só porque tô com minha calça nova? Comprei na Lobrás ontem tá?!
Victor, garoto que vivia cheio de curubas nas mãos por causa de suas carambelas no asfalto, desinformado, questiona:
- O que é Lobrás?
- É uma loja, abestado. Ao pegado da Mesbla. Defronte as Pernambucanas. Onde a gente vai sempre capar bombom - corta Guga.
Nesse momento, Caverna, o mais delegado das peladas, largou sua curica, feita de talo de coqueiro e folha de caderno, e veio, catingando que só ele, arrumar cascaria com Guga.
- O quê que tu quer?! A nêga é minha.
- Hmmmm tu quer te amostrar pros teus pariceiro? Te dôle um bogue!!!
- Me dáli??? Rapá, tu não me trisca!!!
E a galera vem zilada jogar lenha na fogueira.
- Éééésseeeeee!!! Tá falando da tua mãe!!! Chamou de qualhira!
- Ééélasss... eu não deixava!!! Cospe aqui - diz Dudu, que só andava na calha, estendendo a mão.
Mas Guga não entra na conversa dos amigos:
- Rapá, negada só querem ver a caveira dos outros!
- Ihhh gelão... cagou ralo heim Guga!!! Tá aberando!!!
Até que chega Lombo, o mais velho da turma, que jogava peteca naquele momento. Ele tinha o costume de quebrar as petecas alheias na brincadeira do cai, dando um china-pau com seu cocão de aço, principalmente se fosse numa olho de gato. Utilizava, também, o recurso do olhinho, mas dificilmente só bilava. Pediu limpo, completou matança nas borrocas e depois foi pro casa ou bola. Às vezes porco ou leitão visitando. Ele intervém gaguejando:
- Ê Caaaa-Caverna, tu tu tu já tá coisando os outros aí né?! Vai já levar um sambacu!
- Hen heim. Vamo já te dar um malha - confirma Guga, aliviado com a intervenção de Lombo.
- Hen heim - retruca Caverna imitando Guga com voz afeminada.
- Não me arremeda não!!! Olha o raspa!!!
- Ahhh... te lascar!!!
Depois do furdunço por sua causa, Reginete sai toda empolgada de lá e decide dar logo uma parada na quitanda da Zefinha, lembrando que seu Vieira havia pedido que ela comprasse alguns ingredientes para garantir o fim de semana, já que Dona Veridiana ainda não havia feito a Lusitana do mês.
- Oi Dona Zefa. Quero camarão seco pra botar na juçara da dona Veridiana e fazer arroz de cuxá. Me veja 3 Jeneves também, 2 quilos de macaxeira, um lidileite alimba, 2 pães massa fina e 4 massa grossa! Ahh... e uma canihouse pra eu fazer a base pra noite!
A senhora vai checar seu estoque no freezer e retorna:
- Ê essa outra... só tem Jesus. Vais querer? Vais querer quantas mãozadas de camarão?
- Três tá bom. E pode ser Jesus sim.
Ao chegar em casa com as compras, seu Vieira repreende a moça:
- Tu fica remancheando pra trazer o cumê. To urrando de fome aqui já! Cuida piquena!! Vou só banhar e quando voltar quero ver tudo pronto.
- Ô seu Vieira... o senhor é muito desinsufrido! Já to arreliada com uma confusão dos meninos na rua. Não me aguneia! Confie ni mim que faço tudo vuada! O senhor sabe que...
- Já seiii... tá bom... aí fala mais que a nêga do leite. Eu heim?! - seu Vieira interrompe.
Neste momento chega Marquinho, filho do seu Vieira, com a equipagem da Bolívia Querida toda suja. Sinal de mais trabalho pra Reginete.
- Menino, olha essa tua roupa. Tava num chiqueiro era? Vai ficar encardidinha! Isso não sai não! E esses brinquedos?! Tudo esbandalhado! Aí não tem jeito! Olha... tá só o cieiro (ou ceroto, como queiram)!
- Tava jogando travinha com os moleques! Não enche e me dá logo esse refri aí que to com sede.
- Hum Hum. Isso é do seu Vieira!
- Marrapá! Por quê?! Deixa de canhenguice, piquena!
- Deixa eu cuidar comigo que ainda quero sair hoje pra radiola no clubão! Vai rolar só pedra!
Passada a janta, Reginete já exausta lava a louça e reflete sobre seu evento da noite: "Já estou é aziada e as meninas não ligam. Amanhã começa mais um dia de trabalho e se sair hoje ainda fico lisa pro fim de semana!". A moça muda de idéia segue sua rotina. Todos os preparativos para a noite foram em vão? Nãããã! O importante foi chamar a atenção e não se achar mais uma no meio da multidão!
O departamento de Letras da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) é responsável pelo projeto do Atlas Linguístico do Maranhão (ALiMa), que, por meio de gravações feitas nos municípios do estado, documenta e analisa a linguagem falada no estado em diferentes níveis de observação (pronúncia, vocabulário, entonação, organização da frase etc). O trabalho avalia mais especificamente o campo da Geolinguística, o uso da língua distribuído no espaço geográfico. Mais informações no site da universidade: http://www.cch.ufma.br/alima.php
*Professor da Faculdade Atenas Maranhense, mestrando em Educação pela Universidade Católica de Brasília. E-mail: joseneres@globo.com; blog: www.joseneres.blogspot.com
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